quarta-feira, 5 de junho de 2013

A sociedade nas telas

As correntes dos presos são conferidas no contundente drama prisional "O fugitivos".
Graças ao filmes, muitos detentos em regime de trabalho forçado entraram com recurso
de apelação e foram libertados nos Estados Unidos.
Durante a época economicamente conturbada da Grande Depressão, os filmes ofereciam uma janela acessível para o mundo, um lugar onde os espectadores americanos tinham a chance de vislumbrar suas vidas. Pelo preço de um ingresso, qualquer um que fosse ao cinema podia ver sofisticação e glamour em filmes como "Grande Hotel" (1932) e "Ladrão de alcova" (1932) ou aprender sobre a vida de grandes homens como Louis Pasteur e Émile Zola por meio de cinebiografias. Com "Cidadão Kane" (1941), os espectadores puderam penetrar no mundo de uma celebridade contemporânea, o magnata da imprensa William Randolph Hearst.

Vez por outra, os grandes estúdios se sentiam preparados para educar as plateias sobre alguns dos aspectos mais sombrios da sociedade americana. Em 1931, a Warner Bros. comprou um artigo autobiográfico escrito por Robert Elliott Burns, veiculado na revista True Detective e mais tarde publicado como o livro I Am a Fugitive from a Georgia Chain Gang. Apesar das dúvidas quanto ao tema - um diretor o descartou sob o argumento de que era inadequado para uma época "em que as pessoas em geral se encontram tão deprimidas que muitas estão pulando pelas janelas" -, o estúdio insistiu e Burns, embora ainda fosse tecnicamente um foragido da justiça, foi contratado em segredo para trabalhar em uma primeira versão do roteiro. O sucesso de "O fugitivo" (1932), dirigido por Mervyn LeRoy (1900-1987) e com Paul Muni no papel do fugitivo James Allen, revelou de forma incisiva a crueldade do sistema penal do sul do Estados Unidos.
Spencer Tracy vira o jogo ao enfrentar uma turba que pretende linchá-lo
em "Fúria". Este foi o primeiro filme do exilado alemão Fritz Lang em Hollywood.

Fritz Lang (1890-1976) realizou uma denúncia poderosa de outro segredo americano. "Fúria" (1936) foi inspirado na história real de um duplo linchamento em San Jose três anos antes. Spencer Tracy interpreta Joe Wilson, um homem acusado por engano de raptar uma criança. Quando uma turba ensandecida ateia fogo no presídio, ele consegue escapar, mas finge estar morto para que os responsáveis sejam acusados de assassinato. Na verdade, quase todas as pessoas que sofriam linchamento na época eram negras, fato que nenhum estúdio estava interessado em divulgar. A força singular de "Fúria" está na maneira como os espectadores se veem impelidos a simpatizar, de forma incômoda, com os linchadores que também se tornam vítimas de uma injustiça.

Frank Capra (1897-1991) ofereceu uma visão mais otimista das angústias do homem comum. O historiador Robert Sklar atribui o segredo do sucesso de Capra a "sua capacidade de convencer os espectadores de que eles estavam vendo suas próprias forças e fraquezas, seus próprios sonhos e valores, enfim, vendo a si mesmo representados nas telas". Os heróis clássicos de Capra, como Longfellow Deeds, que tenta se livrar de uma herança de 20 milhões de dólares em "O galante Mr. Deeds" (1936), são inocentes cuja bondade é explorada pelos ricos, poderosos e cínicos.
Cartaz de "O galante Mr. Deeds". A comédia
de Capra contrasta os valores tradicionais
das cidades pequenas com a sofisticação egoísta
das metrópoles.
Os heróis de Capra podem ser vítimas de políticos corruptos e do capitalismo, mas não são outsiders. Representar a vida dos despossuídos nas telas era mais problemático. Quando Darryl Zanuck adquiriu os direitos do romance "As vinhas da ira" (1939), de John Steinbeck, o destino dos refugiados do Dust Bowl - série de violentas tempestades de areia que devastaram o sul dos Estados Unidos nos anos 1930 - era uma realidade que muitos não estavam dispostos a encarar. A sensível versão para as telas de John Ford (1894-1973) tocou a consciência coletiva dos cinéfilos da década de 1940. O cantor Woody Guthrie, que reescreveu a história na forma de canção, resumiu sua importância: "Vá assistir 'As vinhas de ira', parceiro... você é o astro daquele filme. Vá ver a si mesmo, ouvir suas próprias palavras e sua própria canção."

PRINCIPAIS ACONTECIMENTOS

1930 - O duplo linchamento de dois negros em Indiana é o último caso desse tipo registrado contra negros em um estado do norte dos Estados Unidos.

1931 - Apesar da Grande Depressão, a RKO Pictures produz a superprodução "Cimarron", sobre a Corrida por Terras em Oklahoma no século XIX.

1931 - "Luzes da cidade", dirigido e estrelado por Charlie Chaplin (1889-1977), é uma das explorações mais profundas de sua persona do "vabagundo".

1932 - Mervyn LeRoy dirige "O fugitivo", uma denúncia pungente das práticas penais da época.

1933 - Thomas Thurmond e John M. Holmes são linchados em San Jose, na Califórnia, pelo suposto assassinato de Brooke Hart. O linchamento é transmitido ao vivo por rádio.

1934 - As cinebiografias "A família Barret" a "A casa de Rothchild" são lançadas.

1935 - É lançado "David Copperfield", baseado no romance de Charles Dickens e dirigido por George Cukor (1899-1983).

1936 - Chaplin retrata a pobreza, as greves, o desemprego, a intolerância política e a monotonia das máquinas em "Tempos modernos", seu último filme como Carlitos.

1937 - Após o sucesso de "A história de Louis Pasteur" (1936), William Dieterle (1893-1972) filma "A vida de Émile Zola".

1939 - Jefferson Smith tenta usar a política para construir um mundo melhor em "A mulher faz o homem", de Frank Capra.

1940 - "As vinhas de ira", baseado no romance de John Steinbeck, revela o drama das comunidades agrícolas despossuídas dos Estados Unidos.

1941 - "Cidade Kane" é lançado. Sem conseguir evitar que o filme fosse realizado, William Randolph Hearst tenta desacreditá-lo.

CIDADÃO KANE - 1941
(Citizen Kane) - Orson Welles    1915-1985

O sonho americano acaba se mostrando vazio para o gigante da imprensa Charles Foster Kane.

"Cidadão Kane", a estreia de Orson Welles na direção, sempre foi considerado "o melhor filme de todos os tempos", o que torna difícil analisá-lo com clareza. Mitos se formaram ao seu redor: que Welles foi o pioneiro de uma série de técnicas cinematográficas inovadoras; que o filme foi desprezado à época do lançamento por ser considerado pretensioso demais. Welles não foi o primeiro a usar técnicas como maior profundidade de campo; sets com teto aparente; superposição sonora;  jump cuts; diálogos "naturalistas", em que as falas se atropelam; iluminação chiaroscuro; ou uma narrativa com múltiplos pontos de vista - embora nenhum outro cineasta tivesse ousado combiná-las com tanto fervor e criatividade estética quanto ele. Quando "Cidadão Kane" entrou em cartaz, a maioria dos críticos o recebeu com entusiasmo, porém, seu lançamento foi sabotado. O barão da imprensa William Randolph Hearst não teve o menor problema em se reconhecer no personagem de Charles Foster Kane e, em um piscar de olhos, toda a sua poderosa máquina de relações públicas entrou em ação contra o filme de Welles, garantindo que ele nunca tivesse um lançamento decente.
O nome de Welles domina o cartaz
do filme pelo qual tentou levar todo o crédito
Para uma obra tão revolucionária, a mensagem por trás do filme é surpreendentemente convencional: os ricos não devem ser invejados por sua riqueza porque eles perderam os simples prazeres do amor verdadeiro e da felicidade. Ainda assim, ele merece seus status: primeiro, pelo fato de a assinatura de Welles ser tão cativante, impressa de forma tão indelével em cada fotograma; segundo, porque hoje os espectadores podem reconhecer muito de Welles no próprio protagonista. "Cidadão Kane" ainda é um filme importantíssimo, porém, em meio a sua grandiloquência visual, ao seu exibicionismo barroco e às suas técnicas ostensivas - por mais fascinantes que sejam -, podemos visualizar a frustração do bloqueio criativo que o futuro reservava para o genial Welles como uma terrível premonição.

CENAS MARCANTES

1. "ROSEBUD"
Prester a morrer, Kane (Welles) diz uma só palavra. "Rosebud", que lança o repórter Thompson (William Alland) em uma cruzada para descobrir a "verdade" sobre quem era Kane de fato. O globo de neve vincula o final da vida do personagem à sua infância; ele simboliza uma existência mais calma e simples.

2. CENAS DE UM CASAMENTO
Em uma habilidosa superposição de cenas de café da manhã ao longo de vários anos, Welles demonstra a deterioração gradativa do casamento de Kane com sua primeira esposa, Emily (Ruth Warrick). O filme é famoso por sua narrativa não linear e o uso do flashbacks a partir de diversos pontos de vista.

3. KANE ENTRA PARA A POLÍTICA
Kane concorre ao governo de Nova York contra seu rival, o magnata corrupto Jim. W. Gettys. Esta cena é um exemplo da técnica de profundidade de campo utilizada repetidas vezes por Welles no filme. Tanto as imagens em primeiro plano quanto aquelas ao fundo estão perfeitamente em foco.

PERFIL DO DIRETOR

1915-1939
Orson Welles nasceu em Kenosha, Wisconsin. Criança prodígio, ele encenou peças de Shakeaspere aos 10 anos. Em 1930, matriculou-se no Chicago Art Institute, passando em seguida a atuar profissionalmente no Gate Theatre Dublin. Em 1933, entrou para a companhia de atores de Katherine Cornell e, em 1936 montou sua peça "Vodoo Macbeth" no Harlem. Welles fundou a Mercury Theatre Company com John Houseman e o "Júlio César fascista" da companhia foi uma sensação na Broadway. Ele passou a trabalhar regularmente como radialista; a adaptação da Mercury de "A guerra dos mundos" para o rádio foi tão realista que causou pânico generalizado entre os ouvintes. Em 1939, foi convidado a dirigir filmes em Hollywood para a RKO. O estúdio lhe ofereceu um contrato para duas películas, sobre as quais teria total controle artístico, algo sem precedentes para um diretor estreante.

1940-1948
Welles dirigiu, corroteirizou e estrelou "Cidadão Kane". Seu segundo filme, "Soberba" (1942), foi mutilado pelo estúdio enquanto ele estava na América Latina. A interferência dos estúdios também comprometeu seus três filmes seguintes: "O estranho" (1946), "A dama de Xangai" (1948) e "Macbeth" (1948). Em 1948, ele abandonou Hollywood, indignado.

1949-1985
Welles passou a ter uma carreira itinerante, especialmente na Europa, atuando em filmes de outros cineastas, com destaque para "O terceiro homem" (1949), dirigido por Carol Reed (1906-1976). Continuou dirigindo suas próprias películas, geralmente em condições turbulentas: "Otelo" (1952); "Grilhões do passado" (1955); "A marca da maldade" (1958, em Hollywood); "O processo (1962, baseado na obra de Kafka); "Falstaff - O toque da meia-noite" (1965, o último de seus filmes baseados em Shakeaspere); "História imortal" (1968); e "Verdades e mentiras" (1973). Deixou vários projetos inconclusos, como "Don Quixote", "The Deep" e 'The Other Side of the Wind". Embora fosse um outsider em Hollywood, Welles nunca deixou de ser procurado como ator e narrador. Também trabalhou em vários comerciais de televisão. Morreu em 10 de outubro de 1985 de ataque cardíaco, duas horas depois de aparecer no programa de entrevistas "The Merv Griffin Show".


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